Recomendações para a minha morte
Neuza Lima/2018
O sol apressado saiu quando eu ainda
estava em nuvens. Afastei as cortinas nebulosas que o cobriam abri uma pequena
fresta deixei-o entrar ardendo meus olhos ainda dormentes tentando pôr em pé
meu corpo sonolento quase inconsciente.
Não consegui. A cama, os lençóis, o
calor uterino daquele lugar não deixava meu corpo vir à luz. Faltava-lhe razão,
sentido para a-cordar, re-nascer. Afinal renascemos a cada manhã. Detive-me
ali, consciente da entrega preguiçosa e modorrenta naquela lama chamada cama.
Por sorte, tal como eu, o sol se
escondeu justificando assim minha modorra uterina. Deleitei-me sem culpa. E
enroscada em minhas mortalhas pus-me a pensar na morte. Sim, na morte. Por que
não, de tudo é o que de mais certo temos.
Estas duas sílabas, morte, eu me propus
atravessar. Como seria morrer, deixar de existir, ser o não ser e não to be or
not to be. Que vazio seria este? Mortos não sentem. Morrer é deixar de ser, de e-xistir. Pensando
assim confesso que senti uma sensação de prazer de calma, de paz. O único
problema é que não tem volta. Esta prerrogativa não me agradou. Preferi ficar
com as experiências das “pequenas mortes”, embora breves, sempre nos trazem de
volta.
Mesmo assim não me furtei em pensar
sobre a minha morte o ambiente era convidativo. Será que eu faria falta? Talvez
por um tempo sim, mas como acontece com todos, com o tempo eu também seria
esquecida. E para mim, a morta, o que aconteceria, para onde eu iria?
Considero-me agnóstica, portanto céu e
inferno está descartado, alma nem pensar. E tudo isso que sou, fui, no caso de
estar morta, para onde iria? Existiriam campos de energia no qual minha memória
estaria inserida e viveria solta no espaço?
Não sei. Desisti desta ideia, não tenho
respostas para isso, mera imaginação.
Resolvi então pensar sobre o meu
enterro, isso sim eu poderia planejar, não garantir, mas almejar. Aqui expresso
meus desejos féretros.
O primeiro deles é que desejo ser
cremada. Não vou brotar, portanto não quero que me plantem na terra.
O velório, se possível gostaria que
fosse evitado, mas sei que é prerrogativa dos que ficam, que assim seja, mas com
uma condição quero deixar antes a lista dos convidados, não quero desconhecidos
olhando para minha cara murcha, finada.
Outra condição são as flores, quero
apenas margaridas, e todas longe do meu rosto, elas me incomodam tanto pelo perfume
quanto pelas pétalas.
A mortalha já está separada, guardada e
avisada a todos. É um tailleur rosa champanhe em seda chantum muito elegante,
com uma linda gola. Nunca usei, comprei para o segundo casamento de minha
filha, mas na última hora achei que me envelheceu. Resolvi comprar outro no
mesmo estilo só que verde petróleo com detalhes em dourado que se fez
acompanhar de um belo chapéu me dando um ar mais rainha Elizabeth nos tempos
áureos e menos doce senhorinha do interior da Inglaterra dos filmes de Jane
Austen, que o rosa me deu.
Assim a cara roupa comprada na Mary
Caetano resolvi não trocar e guardá-la para esta finalidade ser a minha
mortalha. Este tom suave e doce ficará bem em contraste à rigidez do meu corpo morto.
É claro, acompanhado de colar e brincos de pérolas, falsos, os verdadeiros
ficam de herança.
Minhas cinzas desejo que sejam jogadas
ao mar, em uma solenidade alegre com bebidas, música e danças.
Os amigos, amigas e parentes que deverão
levar as cinzas também já estão escolhidos e registrados em papel. Quero em
minha despedida os amigos que ao longo da vida foram como os bonsais e
carvalhos, frágeis e fortes. Ninguém quer amigo forte o tempo todo, afinal, às
vezes, é você quem quer ser o forte. Se algum for antes de mim, já coloquei
possíveis substitutos.
O mar, o de Marataizes foi lá onde
primeiro vi o mar. Que emoção, menininha, não queria parecer bobinha, mas não
me contive, respirei fundo e disse:
–
Parece não ter fim, onde ele acaba?
- Lá do outro lado do mundo. Meu pai
disse.
E eu nem sabia que o mundo tinha outro
lado. O mundo para mim era tudo que eu conhecia e era muito pouco.
A música já está escolhida, mas é
segredo só será revelado na hora certa.
Desejo ainda que seja em um fim de tarde,
ao pôr o sol, quando ele deita seus raios brilhantes ao mar traçando um caminho
colorido em direção ao infinito. Minhas cinzas percorrerão esse colorido caminho
até o outro lado do mundo onde renascerá sem corpo e sem alma e em pura poesia
vai renovar brilhar de novo o arco iris.
Assim poderei ser eterna, infinita.
Afinal, eternidade, é o desejo maior do homem.